sábado, 30 de janeiro de 2010

DIA DA SAUDADE

Chico Buarque canta que “tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, e na sequência busca a resposta para esse sentimento a partir de duas possibilidades: “foi o mundo então que cresceu” ou “a gente estancou de repente”?

Pesquisadores dos efeitos psicológicos do tempo, Zimbardo e Boyd, não perdoam ao nos revelar de forma categórica o que parecemos querer não enxergar: “não há nada que qualquer um de nós possa fazer nesta vida para acrescentar um momento a mais no tempo, e nada permitirá que possamos reaver o tempo mal-empregado.” Ainda assim a gente estanca e mínimos detalhes podem até ser sinais inconscientes desse nosso estancar...

Lembro que quando era criança, minha mãe comprava daqueles calendários onde a cada novo dia devíamos arrancar a folhinha do dia anterior para dar vez à folhinha do dia de hoje. Era uma disputa entre mim e meus irmãos para ver quem conseguia arrancar primeiro a folhinha. Em não raras vezes nos pegávamos esperando dar meia-noite para puxar a nova folha. Éramos crianças, não temíamos o tempo, estávamos sempre ávidos pela mudança, pelo novo dia, pelo espanto que ele trazia aos nossos olhos. A passagem dos dias era celebrada com a alegria da abertura ao desconhecido, ao imprevisível, à novidade.

Vi-me hoje diante de um desses calendários, que comprei ao final de 2009, de certo modo para fazer memória dos tempos passados, tempo onde se olhava para o futuro em cada dia presente. Mas os anos passaram, ou como diria o Renato Russo, “mudaram as estações” e mesmo que digamos que aparentemente “nada mudou”, “mas eu sei que alguma coisa aconteceu”, pois há algo “assim tão diferente”. A diferença era que o calendário marcava o dia 27 de janeiro. Só que já era dia 30 de janeiro, e dia já adiantado, com sol do agreste à pino...

Arranco a folha do dia 27 sem nem lembrar ao certo o que aconteceu nesta data. Faço o mesmo com os dias 28 e 29. Enfim, emparelho o meu calendário com o calendário do mundo. Da mesma forma rápida com a qual arranquei as páginas do calendário, percebo que, como naquela música antiga do Roberto Carlos, “os dias passam correndo”.

Percebo ainda na folhinha, mais um sinal. A palavra “sinal” já não me parece, como antes, tão mais adequada do que a palavra “coincidência”, mas ainda assim insisto, sabe-se lá porque, em usá-la. Na folhinha dizia que 30 de janeiro é o “dia da saudade”.

Até procurei na Internet, mas não encontrei nenhuma razão específica para justo o dia 30 de janeiro ser dedicado à saudade. Talvez por ser o dia do assassinato de Gandhi, sobre o qual Einstein certa vez disse “que as gerações por vir terão dificuldade em acreditar que um homem como este realmente existiu e caminhou sobre a Terra”. O mundo sente saudades de Gandhi, de “Gandhis”. Quem sabe talvez, possa ser devido ao fato de que a última apresentação pública dos Beatles antes da separação da banda ocorreu numa tarde fria de 30 de janeiro. Saudades de um sonho que acabou!

De minha parte fiquei pensando se o passar de 30 dias do novo ano não seria aquele tempo suficiente para percebermos que toda aquela euforia, um mês antes, com o novo ano a se iniciar não seria apenas uma forma de fingir para nós mesmos a realidade de que o bom era o “ano velho”, os dias que se foram, a infância de nossas vidas, o símbolo de uma época de sonhos que hoje percebemos como ilusão. Em sendo assim seria normal sentir saudades.

Mas o que falar sobre saudade? É paradoxal ter dificuldades em explicar algo que se é tão íntimo. Se no “Show do Milhão” o Silvio Santos permitia que fosse solicitada a ajuda dos universitários, me permito então pedir a ajuda dos poetas, para que me ajudem a render homenagem à saudade no dia a ela dedicado, ao menos no calendário civil, porque no calendário cordial, todo dia é dia da saudade:


“Saudade é um dos sentimentos mais urgentes que existem”
(Clarice Lispector)

“O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo...”
(Mário Quintana)

“Quando se ouve boa música fica-se com saudade de algo que nunca se teve e nunca se terá”
(Samuel Howe)

“Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue”
(Adriana Falcão)

“Também temos saudade do que não existiu, e dói bastante”
(Carlos Drummond de Andrade)

“Deus existe para tranquilizar a saudade”
(Rubem Alves)

“Dos nossos planos é que tenho mais saudade”
(Renato Russo)

“Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te”
(William Shakespeare)

“Saudade é um sentimento que quando não cabe no coração, escorre pelos olhos”
(Bob Marley)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

PROBLEMA DE COLUNA

Estou agora olhando através da janela da minha sala aqui na universidade. A vegetação típica do agreste pernambucano vai se esverdeando novamente com o pouco de chuva que caiu nos últimos dias. Ao fundo, carros vão e voltam pela rodovia que passa aqui perto. Para poder ver melhor, mexo a cabeça de um lado para o outro pois uma pilastra externa à janela divide em duas partes o que quero ver, atrapalhando-me de desfrutar da paisagem em sua totalidade. Um problema!

Depois de algumas mexidas de cabeça me dou conta enfim da existência da tal pilastra. Eu a via sim, ela até me atrapalhava de ver além, mas na verdade eu não a enxergava. Era um nada, um vazio que se posicionava bem em frente ao meu desejo de ver. E como toda pilastra, toda coluna, ela é imóvel, rígida, fixa, teimosa, persistente. Assim, acabei por me ater um pouco a ela e ao dar atenção a esta estrutura acabei por ver outras “paisagens”.

Vi que sem ela, o teto que está acima e que me protege do sol e da chuva que hoje aqui cai, viria abaixo. Vi que a existência dela demandou toda uma história anterior. Fiquei pensando em quem a projetou, nas horas de estudo na faculdade e nos inúmeros cálculos que precisou aprender para definir a resistência do material. Pensei ainda em quem a construiu, operários que talvez nunca tenham a chance de cursar uma faculdade, que tiveram a resistência de, sob sol escaldante, colocar a massa junto com o concreto em determinadas proporções e formas, calculadas por alguém desconhecido, para pessoas ainda mais desconhecidas. Pensei ainda em todas as pessoas envolvidas no processo burocrático que culminou no feitio daquela coluna: planos de governo, contatos, conchavos, orçamentos, politicagens, reuniões acadêmicas...

Assim, aprendi a ficar amigo da coluna em frente a minha janela e a respeitar sua história, seus dissabores, suas alegrias, suas vitórias, sua imparcialidade parcial de quem inevitavelmente só tem uma visão por estar fixa ante a minha janela.

Assim são também as pessoas que aparentemente nos atrapalham. Querem apenas um pouco de atenção, querem se sentir importantes porque de fato são. Chefes dizem que seus empregados são o problema por permanecerem estáticos; professores falam o mesmo quanto a seus alunos por serem teimosos. Esquecemos que só há chefes e professores quando existem empregados e alunos. São eles a estrutura que impede que o mundo venha abaixo, portanto, talvez seja melhor enxergá-los de verdade, ouvir suas histórias, ter novas visões de mundo através das janelas que foram posicionadas em nossas vidas.

O autor do belíssimo livro “O Mundo de Sofia” estava certo quando disse que perdemos a capacidade de ser filósofos quando crescemos, por deixarmos de nos admirar com as coisas simples (como a coluna que insistentemente está há mais de três meses na minha frente). Uma criança com certeza a teria notado e a teria questionado muito antes. Talvez por isso, como disse Jesus, o reino de Deus é delas, primordialmente, pois não se cansam de desfrutar, de se admirar e de questionar o mundo que se apresenta todos os dias ante seus olhos. Preciso aprender mais com as crianças e com as colunas imóveis diante das janelas de minha vida...

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

CANTORES FALSOS, BONITAS CANÇÕES

Gosto de músicas que me fazem parar para pensar. O que aconteceu recentemente com “Choro Bandido”, canção do Chico Buarque e do Edu Lobo que até dia desses não conhecia. As palavras iniciais sugestivamente afirmam: “Mesmo que os cantores sejam falsos como eu, serão bonitas, não importa, são bonitas as canções...” E o restante da música, até os brilhantes versos finais, são uma sucessão de aparentes paradoxos. Apenas “aparentes”, pois o fato de se estar em contradição, mesmo sendo o ato contraditório um paradoxo por natureza, talvez seja a menor das contradições humanas, pois cada um, em algum momento da vida já experimentou a sensação de ser incoerente.

O cantor pode ser falso, mas isso não é essencial quando a música é bonita. O comportamento pode até ser ruim, mas isso não muda o fato de que, por vezes, o sentimento que destoa da ação seja algo bonito.

Nossa sociedade foi educada para julgar fatos concretos, observáveis, mensuráveis, esquecendo que nem sempre o fato em si é o mais importante. Esquecemos de ir na raiz, de nos surpreender com o magia da música, ficamos apenas no nível da superficialidade da voz aparente do cantor. “No peito de um desafinado também bate um coração”, dizia Tom Jobim. As vezes somos péssimos cantores, mas não significa que não saibamos compor belas canções de amor.

Em seu poema “Autopsicografia”, Fernando Pessoa consegue, com o requinte e a sofisticação dos grandes poetas justificar o injustificável. “ O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor...” Não é realmente importante ser um exemplo, mas é importante ter um exemplo.

Sou professor. Ser professor é quase ser um poeta nesse sentido “pessoano”. Seria bom que fóssemos sempre exemplos, que fizéssemos sempre aquilo que ensinamos, mas se não o somos, se – como gosto de brincar com os alunos – professores são gente também (mesmo que alguns de nós não pareçamos), então estamos sujeitos a cair no inevitável da contradição, no paradoxo do ser. Se não somos exemplos porém, não podemos nos dar ao luxo de não termos exemplos a dar. Podemos não conseguir administrar nossas vidas, pôr em prática o que defendemos, mas não será por isso que privaremos os outros de terem as ferramentas necessárias para conduzir seu próprio processo de aplicação de tudo o que aprenderam. Até porque, como gosta de repetir o Rubem Alves, “ostra feliz não faz pérolas” (explicação: a pérola surge quando a ostra, incomodada por um grão de areia que conseguiu adentrar em seu casco e que a faz sofrer, com o intuito de aliviar esta dor, envolve o tal grão com certa substância, que uma vez cristalizada a denominamos de pérola).

Não quero aqui justificar incoerências, diminuir o valor da ação em detrimento ao pensamento ou mesmo incentivar o exercício da farsa. O julgamento fica por conta de cada um, como sempre acontece... sempre... Estou apenas compartilhando pontos de vista que, parafraseando o final da música do Chico, “mesmo sendo errados, não deixam de ser bons” (ou seria “mesmo que sendo bons, não deixam de ser errados???)