segunda-feira, 31 de maio de 2010

PINTURAS

Nietzsche foi brilhante ao perceber que ninguém tira de um livro mais do que tem dentro de si mesmo. Os mais puritanos podem achar até herético associá-lo a Jesus, mas este último, de forma não menos poética e filosófica, também fez menção a este fenômeno quando comparou o reino dos céus a um pai que tira de seu baú coisas novas e velhas.

Vê-se, portanto, que o que de fato importa para enxergarmos o mundo são as ”lentes” que utilizamos para tal fim: nossas experiências passadas, nossa formação (ou deformação), os êxitos e os fracassos, as certezas e as dúvidas, as oportunidades aproveitadas e aquelas cujos detalhes se perderam, parafraseando o Roberto Carlos, na longa estrada do tempo que transforma as coisas em quase nada. Mas que quase também são mais um detalhe, pois as coisas importantes, marcantes, intensas, não morrem facilmente e de vez em quando, por estarem guardadas em nossas mentes e corações, acabam aflorando, vindo à tona, se fazendo presentes pela ausência. Computadores são dotados de ferramentas para “deletar” , “bloquear”, “negar permissão”, “arquivar”, “formatar”... o ser humano não. Pobres máquinas! Talvez o Jesus adicionasse hoje em dia uma nova bem-aventurança: Bem aventurados os que não esquecem...

Em minha última crônica, “Tudo Sobre Você”, fiz referência à minha admiração aos poetas e aos compositores pela densidade do que descrevem, capazes de encerrarem o infinito no pequeno espaço de poucas palavras. Mas o que dizer dos que conseguem fazer o mesmo, mas sem as palavras? Os pintores por exemplo. Sem palavras, as telas recheadas de cores e formas – imóveis – são capazes de levar a uma infinita mobilidade de pensamentos.

Ali, naquele espaço outrora em branco, agora coberto de tintas, o enunciado do Nietzsche é ainda mais claro, evidente, óbvio. É minha emoção, é minha recordação, é minha percepção, aquilo que dá sentido ao que vejo. Posso olhar um quadro hoje e novamente amanhã ou depois de um ano, e em cada um desses momentos, minha interpretação, minha significação, minha interação simbólica, me levará de volta aos “mares”, ao contrário do poeta, “dantes navegados” e me deixará a sensação de que da próxima vez que vê-lo, terei – agora sim, como o poeta – ido “por mares nunca dantes navegados”, com aquela sensação de estarmos dentro de um poema do T.S.Eliot, nos vendo no fim de nossa viagem, voltando ao ponto de partida e tendo a impressão de vê-lo pela primeira vez.

Enquanto escrevo, lembro de um trecho do belíssimo “Uma Mente Brilhante” – filme que é um retrato parcialmente biográfico do ganhador do Nobel, gênio matemático, precursor da Teoria dos Jogos, revisor da teoria econômica clássica e, creiam, esquizofrênico, John Nash – onde o personagem interpretado pela belíssima Jennifer Connelly, Alicia Nash, esposa do protagonista da história, em uma festa, ao admirar uma pintura supõe que Deus seja um pintor, pois só isso explicaria a existência de tantas cores.

As nossas lembranças podem ser analogamente comparadas a quadros emoldurados pela vida e fixados na parede de nossa alma. Talvez por isso, muitas vezes, nos resta tão somente a possibilidade de ter acesso apenas às pinturas que marcaram e demarcaram o nosso existir, mostrando-nos aquilo em que nos tornamos e principalmente aquilo que nunca conseguimos ser. Imobilidade... mobilidade... imobilidade...

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